Moksha (libertação) não é alguma coisa nova a ser conseguida, pois ela já está presente, tendo apenas que ser percebida.
Essa percepção brota da eliminação da ignorância. Absolutamente nada é mais necessário para atingir a meta da vida. – Tripura Rahasya
Pedro Kupfer
Samadhi: dentro ou fora da prática?
A tradição yogika conhece dois caminhos diferentes que conduzem à iluminação. Destes, o primeiro é o da prática constante e o desapego (abhyasa e vairagya), postulado por Patañjali nos seus Aforismos do Yoga (Yoga Sutra). O segundo caminho que propõe a iluminação como forma de vida é muito menos conhecido. Nele, iluminar-se não significa negar ou ficar de costas para o corpo e para a vida no mundo. A experiência da libertação e a existência no mundo real são perfeitamente compatíveis. Essa possibilidade de levar uma vida onde a iluminação aconteça concomitantemente com o cotidiano é conhecida no Yoga como sahaja samadhi.
O samadhi pode ser definido como um estado de consciência em que a dicotomia sujeito-objeto, característica do estado de vigília, é temporariamente abandonada através da identificação total do meditador com o objeto da meditação.
Não obstante, temos uma péssima notícia para os entusiastas: experienciar o samadhi não é garantia de que o ego e a mente serão aniquilados. Fatalmente, após esta profunda experiência, existe a volta às experiências do corpo, da mente e do ego. Tudo continua como estava antes: os medos, os condicionamentos e o sofrimento voltam à tona. Tornar-se mais forte do que as próprias fraquezas interiores é tarefa das mais árduas, pois viver em estado de dualidade é um hábito do qual é extremamente difícil se libertar.
É por isso que algumas tradições yogikas não dualistas, tanto tântricas quanto vedânticas, negam enfaticamente a necessidade de buscar essas experiências. Elas não são nem definitivas nem duradouras.
A idéia é que não devemos libertar-nos do mundo, mas no mundo. O mundo não é algo diferente de nós mesmos, do qual devamos fugir. O mundo é uma projeção do poder da Consciência Infinita, que está igualmente presente em nossa essência mais profunda. Portanto, tudo é sagrado.
O Tripura Rahasya e a iluminação espontânea
Essa atitude, revolucionária em termos do que se entende por prática de Yoga atualmente, está belamente expressada num shastra do tantrismo shaktadvaita (shaktismo não-dualista) chamado Tripura Rahasya (‘O Segredo das Três Cidades’) e atribuído ao sábio Shri Dattatreya. Este texto narra a história do príncipe Hemachuda e a princesa Hemalekha, do reino de Videha e tem como objetivo demonstrar que nem sequer mil samadhis conseguem tirar a pessoa da rede de seus próprios karmas e samskaras.
A história é a seguinte. Um dia, o príncipe estava caçando na floresta quando foi supreendido por uma forte tormenta. Vislumbrando em meio à chuva, a ermida de um sábio no alto de uma montanha, tomou a decisão de refugiar-se nela. A bela filha do sábio, Hemalekha, abriu a porta e deu-lhe as boas-vindas. O príncipe apaixonou-se imediatamente pela moça sua mão em casamento. Obtida a aprovação do pai, eles casaram-se.
O tempo passou e, apesar de Hemalekha ser uma ótima esposa, bondosa e atenta, parecia não compartilhar a paixão pela vida que seu marido exibia. Pelo contrário, estava sempre serena, e um pouco ausente, como que indiferente, tanto perante as coisas boas, quanto perante as coisas ruins que acontecessem.
Isso produziu uma certa frustração no apaixonado príncipe, que, interrogando-a, obteve uma resposta que era, ao mesmo tempo, um pedido: ‘Estou em busca da felicidade eterna. Por favor, ajude-me a encontrá-la’.
De início, o príncipe achou que o pedido de sua esposa era absurdo e começou a questioná-la. Ao perceber a penetrante sabedoria de suas respostas, descobriu que estava tendo com ela o diálogo mais profundo que jamais tivera e vislumbrando coisas nas quais nunca tinha pensado antes. Como resultado desse diálogo, ele próprio entrou numa profunda crise existencial e acabou por fechar-se em seu quarto para encontrar a iluminação. Não tardou muito em atingir e dominar o samadhi.
Uma vez, quando a princesa foi visitá-lo em um dos raros momentos em que ele estava fora desse estado transcendental, ele lhe disse: ‘Alcancei a felicidade perfeita do samadhi‘. Porém, novamente, a bela e sábia Hemalekha, com sua profunda acuidade, demonstrou-lhe tranqüilamente que estava enganado.
Disse-lhe então: ‘Meu querido, creio que você ainda não aprendeu nada. Você está tão longe do samadhi quanto o reflexo das estrelas numa poça d’água está do céu, pois somente experiencia essa felicidade quando está sentado meditando. Que tipo de iluminação é essa que se dissolve quando você abre os olhos e se levanta?‘.
Argumentou que, se precisava ainda concentrar-se tanto para entrar em samadhi, não tinha conquistado o estado da felicidade suprema. Todavia, fez o príncipe perceber que o Ser Infinito que estava procurando não estava apenas dentro de si próprio, mas igualmente fora dele, em todas as coisas. Finalmente, revelou-lhe que o objetivo verdadeiro e secreto do Yoga é a felicidade real do sahaja samadhi.
Como resultado da aplicação desses ensinamentos, Hemachuda alcançou a verdadeira iluminação através do sahaja samadhi. Naturalmente, também percebeu que sua esposa já havia alcançado esse estado havia tempos e ficou devidamente grato a ela. Assim governaram na paz do samadhi espontâneo, e todos no reino foram felizes.
Sahaja significa em sânscrito ‘nascer junto’. Esse termo faz referência à união de dois pólos que acontecem nesse estado: mukti e bhukti, ou libertação e experiência no mundo. Assim, o sábio Yajñavalkya nos diz na Ashtavakra Gita, II:1-2:
Eu sou a pura e serena Consciência, mais além da natureza.
Durante muito tempo fui cegado pela ignorância.
Como o Único, ilumino este corpo e o mundo.
Possuo o mundo inteiro e, em verdade, nada possuo