A Maestria nas Ações

Mais um trabalho de Conclusão do nosso curso de Formação em Yoga com o suporte do Ayurveda feito pela querida aluna Isis Tatiana. Agradecemos muito por tantas contribuições ao Yoga. Parabéns e Namastê! Ri e Si.

Trabalho de  Conclusão do Curso de Formação em Yoga- 2022

Por – Isis Tatiana Martinho Rubin

A Maestria nas Ações

Prefácio

Minha primeira leitura da Bhagavad Gita foi no ano de 2022 (o atual), ano em que fiz meu primeiro Curso de Formação em Yoga. Já possuía alguma ideia sobre o conteúdo dessa escritura mas apenas por passagens em livros sobre espiritualidade, e citações de professores nas aulas de Yoga, que praticava há alguns anos. Também por ser fã do Raul Seixas desde a adolescência-  essa sempre foi a sua canção que me deixava mais pensativa e após ouvi-la, passava algum tempo em reflexão… De onde vinha aquela linguagem de afirmações tão enigmáticas?

Após alguns capítulos de leitura fui sentindo que toda minha ideia de espiritualidade estava sintetizada lá dentro. Na Gita, minhas ideias meio bagunçadas sobre a  Ação, o Conhecimento e a Devoção, estavam bem organizadas , e senti como se estivesse redescobrindo algo que eu ainda não havia descoberto. Percebi como o Karma Yoga estava inserido em alguns aspectos do meu cotidiano, sem que eu soubesse disso, e pude então começar a percebê lo e praticá lo de forma mais consciente.

Não tenho a intenção de trazer aqui nenhuma grande reflexão filosófica sobre todo o imenso conteúdo espiritual, histórico e teológico contidos nessa escritura, pois creio que não tenho bagagem suficiente para uma discussão desse nível. Gostaria apenas de mostrar como, nas minhas impressões e interpretações, descobri que a Gita tem total relação com a minha vida cotidiana e talvez com a vida de tantas outras pessoas por aí.

Essa dissertação será concentrada nos capítulos 1 a 6 da Bhagavad Gita, que são os capítulos que dizem respeito ao Karma Yoga, o Yoga da ação. Ela é direcionada aos leitores iniciantes da Gita, que assim como eu, estão começando a encontrar muitas respostas nas palavras profundas e milenares desse pequeno livro.

“A Canção do Senhor”

Vamos iniciar com breve resumo sobre o contexto histórico e cultural da Bhagavad Gita.

Essa escritura encontra-se inserida no Mahabharata, o mais famoso épico indiano, que conta a história de um reino que existiu provavelmente entre1100 a.c. e 500 a.c. Inicialmente ela era narrada ou cantada, e depois de alguns  séculos foi escrita, recebendo várias inclusões mitológicas e religiosas, chegando ao número de mais de cem mil versos. Os 700 versos divididos em 18 capítulos da Gita, foram inseridos no épico em algum momento entre o primeiro e segundo século da era comum em consequência ao crescimento do vaishnavismo, que incluía a devoção a Krishna. Acredita-se que a data da composição original da Gita é anterior ao Mahabharata, sendo encontradas várias referências à Krishna e Arjuna nas Upanisads. 

A palavra Gita, no sânscrito, significa “canção”  e Bhagavan significa “senhor”. O “senhor” se refere exclusivamente a Krishna, cuja vida e existência na Terra deram origem a várias interpretações: a personificação do Absoluto, avatar de Vishnu, o “Eu” que reside o interior de cada ser, ou de uma forma dualista- o próprio Deus encarnado como ser humano e de natureza distinta dos outros seres.

A Gita trata-se do diálogo entre Arjuna, comandante do exército dos Pândavas, e Krishna, condutor de seu carro de guerra, no campo de batalha de Kurukshetra. O momento do diálogo é o instante que antecede a batalha entre os Pândavas e os Kauravas, ambos pertencentes a uma mesma família real. Amigos e parentes estão perfilados em lados opostos da guerra, prontos para iniciar o combate. Arjuna então, é acometido por uma grande tristeza e angústia por ter que lutar contra sua própria família e larga o seu arco, decidido a não lutar. Frente à essa inesperada desistência do grande guerreiro, Krishna instrui Arjuna na filosofia do Yoga, que o ajudará a compreender melhor o seu próprio dharma, através de suas ações no mundo, do conhecimento, do discernimento, da meditação e da devoção, como caminho para a libertação. Esse caminho foi chamado de Yoga. Não existe tradução exata para a ideia da palavra “dharma” dentro da cultura hindu, o mais próximo seria “o dever”, ou “aquilo que sustenta a nossa vida”.

Essa guerra pode ser interpretada de várias formas: a luta das forças do dharma, contra o adharma, do Eu divino contra o ego, ou até o bem contra o mal. Arjuna, representando o homem ainda não plenamente consciente de sua natureza divina, se recusa a lutar contra o seu ego humano, pela conquista da sua soberania espiritual. Seus adversários são os sentidos, a mente, as emoções, e o intelecto, representados pelos seus entes queridos.

Segundo a filósofa prof. Lucia Helena Galvão: “a Bhagavad Gita resume as leis fundamentais do Universo para que o homem tenha uma síntese do que é a vida, do que está fazendo nela, onde tem que chegar e com quais ferramentas, e assim possa se posicionar” ou seja, a auto realização do homem através do auto conhecimento.

Sankhya e Yoga

Dois caminhos são descritos por Krishna para alcançar a realização espiritual. O caminho do sankhya e o caminho do yoga. Mas um depende do outro e qualquer um deles chegará ao mesmo resultado (v.5.4)

O caminho do sankhya é o caminho intelectual, que usa o conhecimento como ferramenta de purificação da mente. É a teoria e filosofia, é o estudo da natureza do Ser e de todo o Universo. É o entendimento intelectual do Eu maior.

O caminho do yoga é o caminho da ação, do ajustamento das ações. É a aplicação prática diária do conhecimento. É a entrega das ações ao Eu maior.

Karma Yoga- o yoga da ação

A ação, como substantivo, é considerada a atividade, a energia, o movimento, a evidência de uma força capaz de gerar um efeito. O ser humano tem a inteligência, consciência e capacidade para analisar seus atos, planejar suas atividades e coloca las em prática, e é isso que o difere dos demais animais.

Mas essa inteligência e capacidade de agir, faz dele necessariamente um ser espiritualmente realizado? Através de suas ações, o homem pode encontrar o caminho da libertação?

“Aquele que fez uso da inteligência descarta, aqui mesmo, tanto as boas quanto as más ações. Por isso, ajusta te ao yoga: o yoga é a maestria nas ações”(v.2.50)

“Satisfeito com o que obtém, sem qualquer expectativa, colocando-se além das dualidades, permanecendo o mesmo no sucesso e no fracasso, não é mais aprisionado pelas ações.”(v.4.22)

Agir no mundo é essencial. Estamos praticando ações o tempo inteiro, ao acordar, respirar, se alimentar, trabalhar, fazer um serviço voluntário. Mas a ação correta, a reta ação, é a ação desapegada de seus resultados. O fruto final de qualquer ação em nossa vida é o agrado ou o desagrado. Nos aproximamos dos frutos que nos agradam e lutamos ou fugimos dos que nos desagradam. O desapego a esses frutos das ações consiste em executar todas as ações necessárias, quer elas nos produzam agrado ou não. Significa vencer o mecanismo mental que nos escraviza a agir sempre da mesma forma automática e condicionada pensando sempre no resultado das ações- agrado ou desagrado.

As ações em si, não são produzidas somente pelo corpo físico mas pela combinação de cinco componentes:  o corpo, a mente, os sentidos, a energia (prana) e o Eu- esse último se manifestando na forma da intuição.

A reta ação é apoiada em Brahma. “A oferenda é Brahma, oferecida por Brahma ao fogo de Brahma”-v. 4-24, ou seja, através do desapego podemos sentir Brahma como sendo o fruto da ação, o realizador da ação e o recebedor da ação.

“Faz tu mesmo a ação adequada, a ação é de fato superior à não ação, nem mesmo a tua caminhada corporal poderia se completar se estivesse entregue à inação.”(v.3.8)

“Aquele que é capaz de ver a não ação na ação, e a ação na não ação, esse está lúcido entre os seres humanos. Ajustado ao seu Dharma, ele faz a ação por completo.”(v.4.18)

” A renúncia e o yoga da ação produzem, ambos, a felicidade final. Mas dentre ambos, o yoga da ação se destaca em relação ao da renúncia às ações.”(v.5.2)

Três tipos de ação foram descritas por Krishna e detalhadas abaixo:

1- O reto agir, a ação ajustada, sem apego aos frutos. A ação desapegada é sempre ajustada ao dharma.  O  yoga ensinado por Krishna, conduz  Arjuna de volta ao caminho do seu dharma.  Karma Yoga é o ajustamento da conduta pessoal ao seu próprio dharma, visando o entendimento do Eu maior através das suas ações. “É melhor o seu dharma sem qualidade do que o dharma de outro bem executado.”(v.3.35)

2- O falso agir, que é o agir em busca dos frutos, é o agir do ego humano;

3- O  não agir, que é a total passividade, oposta à atividade, em busca de uma redenção para os males da humanidade. É uma ideia muito difundida na Índia e no Oriente como um todo, mas muitos o consideram como o egoísmo passivo máximo.

Krishna diz que a ação é natural. “Ninguém fica sequer por um instante sem produzir ações, pois todos independentemente de sua vontade, são levados a fazer ações pelas qualidades nascidas da natureza material.”(v.3.5)

As qualidades nascidas da natureza material, ou gunas, são três: Sattva, Rajas e Tamas e são elas que aprisionam o espírito imutável no corpo físico. Sattva se fixa na harmonia, pureza e iluminação, Rajas no movimento, vibração e poder de transformação e Tamas no torpor, inércia e embotamento.

Resumidamente, se levarmos as três gunas para o campo das ações, a reta ação são as ações sattvicas, o falso agir são as ações rajasicas e o não agir as ações tamasicas. As três gunas são aplicadas a tudo que existe no Universo manifesto: nos alimentos, nas asceses, na devoção, no conhecimento, na inteligência, no dharma pessoal, na caridade e todas elas são descritas na Gita.

Nos Yogasutras, Patanjali cunhou a expressão Kriya yoga ou Karma Yoga como disciplina na ação, sendo essa, um sadhana para alcançar a libertação.

“O ajustado, tendo abandonado o fruto da ação, alcança a paz definitiva. O desajustado, apegado ao fruto, é aprisionado pela ação do desejo.”(v.5.12)

Colocando a luz do discernimento sobre as nossas ações, fazemos as escolhas corretas de forma consciente, e assim, cada renúncia gerada por essas escolhas não nos geram mais angústia nem sofrimento. A partir daí, começamos a fazer tudo o que precisa ser feito, de forma correta, sensata,  justa, sem esperar nada em troca, sem expectativa de resultado, nem bom, nem ruim porque sabemos que estamos agindo com a excelência do discernimento. Essa é a maestria nas ações. O amor ao ato de agir em si é o que leva ao autoconhecimento e à autorrealização.

A equanimidade surge então como uma consequência da maestria nas ações, pois agindo dessa forma, a nossa atitude frente ao resultado de qualquer ação será a mesma- serenidade e aceitação.

Karma Yoga e a minha vida cotidiana

Descobri o Karma Yoga na minha vida quando observei com a luz da consciência algumas situações corriqueiras, tanto na minha vida pessoal quanto profissional. Através do conceito de equanimidade da Gita, percebi que mantinha serenidade e aceitação frente aos resultados de algumas das minhas ações, fossem eles bons ou ruins. Sempre em ações feitas com total presença de espírito e atenção no momento presente- valorizando aquele momento como único e fazendo a escolha com discernimento, independentemente do que ela iria gerar como resultado. 

Ações feitas como filha, na hora de me assumir como adulta e colocar a minha verdadeira vontade acima da vontade dos meus pais. 

Ações como esposa, para aceitar os defeitos e qualidades do outro e assumir os meus próprios defeitos e qualidades. 

Ações como mãe, para amar incondicionalmente, mas também ser firme em valores e educação em nome desse amor. 

Ações como médica para cuidar de cada paciente da forma correta mesmo que essa não fosse a vontade dele.

Mas o que são algumas ações frente a todas as ações que praticamos o tempo todo?

Obviamente, ainda tenho um longo caminho, talvez de muitas vidas até alcançar a maestria. Mas entendo que, parar e observar com discernimento, alguns poucos momentos da vida, mesmo sem ter total consciência,  já é o começo.

E esse começo já me permitiu “retirar as lentes” (ou pelo menos trocá las por uma mais translúcida) por alguns breves instantes, como ao contemplar o nascer do Sol, o oceano infinito e sua linha no horizonte, brincar com meus filhos e ouvir a risada deles, ao ouvir a música do primeiro encontro com meu marido, fazer um carinho na minha cachorrinha. Como médica, ao receber um bebê recém nascido no colo, segurar a mão e confortar um paciente que estava com medo, tomar uma coca cola as 5 h da manhã depois de trabalhar o plantão todo sem parar. Momentos que aparentemente são apenas experiências dos sentidos, mas que foram e ainda são momentos de percepção real da paz, da plenitude e da felicidade que já estão dentro de nós.

Krishna e Arjuna

Bibliografia

Bhagavad Gita- texto clássico indiano, tradução comentada de Carlos Eduardo G. Barbosa, Ed. Mantra

Bhagavad Gita-tradução e notas Huberto Rohden, Fundação Alvorada

O Yoga que conduz à plenitude- Gloria Arieira, Ed. Sextante

You Tube Canal José Rugue Ribeiro Jr- Estudo da Bhagavad Gita

You Tube Canal Nova Acrópole Brasil – Bhagavad Gita comentários filosóficos sobre o livro sagrado indiano, Prof. Lucia Helena Galvão

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